Vinland Saga e a juventude periférica diante do ciclo da violência
- Matheus iéti

- 11 de out.
- 4 min de leitura
O que significa crescer em um ambiente marcado pela violência? Como um jovem pode se transformar em adulto sem repetir os traumas herdados do lugar em que nasceu? E, ainda mais difícil: como escolher a gentileza em um mundo que insiste em nos forjar pela dor?

Essas perguntas atravessam tanto a vida de milhões de jovens periféricos no Brasil quanto a trajetória de Thorfinn, protagonista de Vinland Saga.
O mangá de Makoto Yukimura parte de um dos períodos mais brutais da história, a era dos vikings, pra contar a vida de um garoto que perde o pai de forma violenta e passa a juventude consumido pelo desejo de vingança. Mas, no decorrer da série, o que parecia apenas uma narrativa sobre batalhas se transforma em uma profunda reflexão sobre como romper o ciclo da violência e se tornar adulto.
E é justamente daqui que apresentamos o paralelo com a realidade periférica brasileira: se com o amadurecimento, Thorfinn luta pra não se tornar refém da espada, os jovens periféricos lutam diariamente pra não se tornar reféns de uma sociedade que insiste em impor a guerra desde cedo.
A infância sequestrada pela violência
Thorfinn tinha tudo pra seguir o caminho do pai, Thors, que acreditava em uma vida livre da espada. Mas quando o vê morrer diante de seus olhos, essa infância é abruptamente interrompida.
Na favela, algo parecido acontece: a infância também é interrompida cedo demais. Crianças crescem cercadas por tiroteios, pela ausência de políticas públicas, pela violência do Estado. Muitas vezes, são obrigadas a amadurecer rápido demais, carregando responsabilidades ou traumas que moldam sua visão de mundo.

O ciclo começa aí: quando o primeiro contato com a realidade é a brutalidade, a raiva e a dureza passam a ser vistas como únicas formas de sobrevivência. E a pergunta se repete: como manter a inocência, ou ao menos a esperança, quando a vida já foi marcada pelo luto tão cedo?
O ciclo da violência: a engrenagem que consome a vida da juventude periférica
Durante anos, Thorfinn acredita que sua vida só teria sentido se ele matasse Askeladd, o assassino de seu pai. Sua juventude é moldada pelo ódio, até que ele mesmo se perde nesse caminho. Essa narrativa não é distante da periferia: jovens atravessados pela violência muitas vezes são empurrados pra dentro de um turbilhão que parece inevitável.
Segundo o Atlas da Violência de 2023, cerca de 77% das vítimas de homicídio no Brasil são negras, e a maioria tem entre 15 e 29 anos. Além disso, o país possui a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 830 mil pessoas presas, em sua maioria jovens negros e periféricos (dados do CNJ, 2022). Esse sistema interrompe vidas inteiras: a violência do Estado gera revolta; a revolta gera confronto; o confronto se interliga ainda mais a violência.

É como se milhares de jovens fossem treinados pra guerras que nunca escolheram. Muitos são levados pra dentro do sistema prisional, que se transforma em uma versão moderna da escravidão mostrada em Vinland Saga: corpos reduzidos a números, a força de trabalho usada pra enriquecer outras pessoas, enquanto os sonhos ficam suspensos.
Como escapar de um ciclo de violência que parece não ter saída?
Ruptura: quando a paz se torna ato revolucionário
A virada da saga acontece quando Thorfinn, cansado do vazio da vingança, decide abandonar a espada. Ele vai na contramão de toda a lógica Viking, que via na guerra o único destino possível pra sobreviver e alcançar a glória.
Ao escolher a paz, Thorfinn se torna um “traidor” da sua própria cultura, mas, na verdade, abre espaço pra uma nova possibilidade de futuro: a construção de Vinland, um território sem guerra, sem escravidão e sem violência.
Na periferia, escolher a gentileza também é ir na contramão. Ser solidário, cuidar da família, sonhar com a universidade, batalhar por justiça social, tudo isso é um ato de resistência em um ambiente que espera, muitas vezes, que o ódio se perpetue.
Amar e ser gentil em meio ao caos é revolucionário.
Mas, novamente, a pergunta permanece: como construir essa “Vinland” em territórios constantemente atravessados pela violência, pela fome e pela desigualdade?

O adulto que se torna gentil
Ao encerrar a obra, Makoto Yukimura escreveu que passou vinte anos refletindo sobre o que significa crescer, e concluiu:
“Ser adulto é se tornar uma pessoa gentil. O objetivo do crescimento é esse.”
Essa frase é vista de maneira profunda quando olhamos para os jovens periféricos. Crescer em meio à violência e, ainda assim, não se tornar refém dela, é talvez a maior prova de força. Ser gentil não significa ser frágil; significa ter a coragem de interromper o ciclo de ódio e abrir espaço pra novas possibilidades.
O contraste com os vikings é evidente: enquanto sua cultura glorificava o saque e a guerra, Thorfinn escolhe a paz. No Brasil, enquanto o Estado insiste em políticas de encarceramento e militarização, jovens periféricos sonham em criar projetos culturais, em fortalecer seus territórios e cultivar solidariedade. Ambos os caminhos exigem altruísmo e coragem de dizer não ao uso da arma.

Vinland Saga chegou ao fim, mas mostra que a maior guerra não é contra um inimigo externo, mas contra o próprio ciclo de violência que nos habita. Pra Thorfinn, essa batalha foi abandonar a vingança. Pro jovem periférico, pode ser escolher viver sem reproduzir os traumas herdados.
Se crescer é se tornar gentil, como cultivar a gentileza em um mundo que insiste em nos forjar na dor?
Este texto não pretende oferecer uma solução definitiva para a violência no Brasil. Ele é, antes de tudo, uma homenagem a todas as vítimas da violência doméstica e da opressão policial em nossa sociedade, vidas interrompidas por um sistema que insiste em repetir suas próprias guerras


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