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Uma leitura sobre a guerra das facções no Rio de Janeiro através do mangá Kingdom

  • Foto do escritor: Matheus iéti
    Matheus iéti
  • 11 de out.
  • 3 min de leitura

E se as guerras travadas entre as facções do Rio de Janeiro não forem apenas conflitos urbanos isolados, mas parte de uma engrenagem que interfere diretamente nas relações sociais?


Kingdom e a guerra das fações | arte: Anime di Cria

E se fizermos um paralelo entre o que acontece hoje nos morros cariocas e o que aconteceu há mais de dois mil anos na China, durante o Período dos Estados Combatentes?


É isso que esse texto propõe: ler as dinâmicas de poder, violência, lealdade e disputa territorial nas favelas cariocas à luz do mangá Kingdom (キングダム, Kingudamu), série escrita e ilustrada por Yasuhisa Hara. A obra narra, em tom épico, a unificação da China sob o reino de Qin, a partir da trajetória de Shin, um órfão de guerra que sonha em se tornar um Grande General sob os céus.


Segundo dados do IBGE (2022) e o Dicionário de Favelas Marielle Franco, o município do Rio de Janeiro possui pelo menos mil favelas mapeadas. Cada uma com sua dinâmica interna, mas muitas sob o domínio de forças externas que impõem regras, reorganizam relações sociais e, acima de tudo, travam guerras invisíveis e visíveis por controle territorial.


Kingdom e a guerra das fações | arte: Anime di Cria

Em Kingdom, o Arco da Conquista de Han é o 27º da obra e detalha a campanha do Estado de Qin, liderado pelos generais Tou e Ri Shin. Eles enfrentam as forças de Han, o primeiro estado a ser dominado e a batalha decide o futuro de uma região inteira. Após a conquista, não há celebração plena, o foco se desloca para as consequências sociais: o que fazer com o povo derrotado? Como lidar com os ressentimentos, com os espiões infiltrados (x9) e com o trauma da dominação?


Esse deslocamento de atenção, da guerra para o pós-guerra, é o ponto de contato com o Rio de Janeiro. Quando uma facção toma uma favela, o impacto não se resume à troca de chefia ou domínio de ponto de venda. O tecido social se transforma: relações de amizade, estruturas familiares, vocabulários, rotinas, afetos.


As principais facções atuantes hoje no Rio são: Comando Vermelho (CV), Terceiro Comando Puro (TCP), Amigos dos Amigos (ADA), Milícia do Zinho (antiga Liga da Justiça) e milícias locais independentes.

A guerra entre essas forças não se dá apenas por armamento ou poder de fogo, mas também pela capacidade de sustentar o domínio social sobre um território. A imposição de regras, as alianças, os códigos, as retaliações, tudo lembra a disputa por hegemonia retratada no mangá.


Moradores que não têm envolvimento direto com o tráfico, mas possuem laços afetivos com alguém que entrou pra essa estrutura, passam a ser vistos como "ligados ao bonde" e se tornam alvos. Relações são cortadas, famílias são separadas, e a vida cotidiana passa a ser atravessada por medo, silêncio e tensão.



O Morro do Chaves é um exemplo concreto. Hoje dominado pelo TCP, era anteriormente ADA. A virada ocorreu por volta de 2014/2015, quando uma série de invasões lideradas por Playboy quebrou décadas de domínio do Comando Vermelho. Desde então, o CV tenta retomar a favela, com 2025 sendo um dos anos mais tensos: ataques simultâneos ao Largatixa, Quitanda e Pedreira (em Costa Barros e Pavuna) mostram que a guerra segue ativa.


Motoboys também sofrem com esse redesenho territorial. Por transitarem entre diferentes comunidades, estão sujeitos às barreiras invisíveis que a geopolítica das facções impõe. O Jorge Turco, entre Rocha Miranda e Colégio, é conhecido por ser “impossível de fincar bandeira”. O Chaves também se tornou um espaço dividido, onde o simples ato de visitar um parente pode ser interpretado como provocação.



Em Kingdom, mesmo após a vitória militar, há o receio do rei e seus conselheiros: o povo de Han pode se insurgir, enviar espiões, sabotar a construção do novo império. Não existe paz definitiva enquanto o território ocupado não for pacificado socialmente. Essa lógica faz parte da realidade do Rio de Janeiro distante da Feira da Glória, onde a posse do território não garante estabilidade, mas sim um novo ciclo de disputa.


Kingdom e a guerra das fações | arte: Anime di Cria

Este texto não oferece uma resposta pro problema da guerra de facções no Rio. Seu objetivo é propor uma leitura simbólica, que permita enxergar essas disputas com a complexidade e o peso que têm, algo que o mangá Kingdom faz com maestria ao narrar o nascimento de um império.


Nas favelas cariocas, essas guerras prejudicam milhares de vidas, limitam futuros, violam afetos. Mesmo assim, inúmeras famílias resistem. Por isso, essa reflexão é também uma homenagem à dignidade que persiste onde o estado e a elite insistem em não olhar. E um gesto de luto por todas as vidas perdidas, sem distinção de cor, gênero, afiliação ou religião.



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